Processo e Constituição – Algumas reflexões
José Maria Rosa Tesheiner - :Professor de Processo Civil na PUC-RS, Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
Resumo
Neste escrito, aborda-se, inicialmente, o tema do controle de constitucionalidade como espécie do fenômeno “rejeição”: mais especificamente, como caso de rejeição das leis pela sociedade. Apresentam-se, a seguir, as políticas públicas, como possível objeto de decisão jurisdicional, com base num texto de Rogério Gesta Leal, com que se transpõe um dos últimos “limites da jurisdição”, como decorrência lógica da tese da eficácia direta da Constituição e dos direitos fundamentais. Seguem-se, quase em contraponto, as críticas de Cezar Saldanha Souza Júnior à corrente que propaga, “sem devidas cautelas e necessárias ressalvas”, a constitucionalização direta e imediata do direito ordinário. O mesmo tom crítico encontra-se no item seguinte, com relação à idéia de que qualquer direito, quando reclamado por via de ação, transmude-se em direito fundamental. Mostra-se, na sequência, um caso paradigmático de invocação de princípios constitucionais como simples “racionalização” a posteriori de uma solução simplesmente exigida pela razão prática. Em continuação, manifesta-se o temor do arbítrio judicial, como decorrência do desprestígio do princípio da legalidade, risco não afastado pela exigência constitucional da motivação das decisões judiciais. Encerra-se o texto com reflexões sobre a criação judicial do direito.
Sumário
1. O controle de constitucionalidade e o fenômeno da rejeição. 2- Jurisdição e políticas públicas. 3- Sobre a constitucionalização do Direito ordinário. 4 - Ação e direitos fundamentais. 5. Soluções práticas e direitos fundamentais. 6- Constituição e arbítrio judicial. 7- Motivação e arbítrio. 8- Criação judicial do Direito. 9- Lei e jurisprudência
Palavras-chave: Controle de constitucionalide. Jurisdição. Políticas públicas. Constitucionalização. Ação. Direitos fundamentas. Arbítrio judicial. Criação judicial do Direito.
A interconexão dos temas “constituição” e “processo” suscita múltiplas reflexões, dentre as quais as apresentadas a seguir.
1. O controle de constitucionalidade e o fenômeno da rejeição
Ainda que provindas de um governo autoritário, as leis precisam de um certo grau de aceitação social, para se tornarem operantes.
O fenômeno da rejeição das leis pelo corpo social suscitou a questão da revogação da lei pelo costume, a que o positivismo respondia que uma lei só por outra lei se revoga, afirmação a que se contrapunha a de que o costume começava por revogar essa própria norma.
O controle judicial da constitucionalidade das leis constitui uma forma institucionalizada de rejeição de leis pelo corpo social, sobretudo depois que o princípio do devido processo legal adquiriu conotação também substancial, permitindo o exame da razoabilidade da lei.
Há o controle concentrado de constitucionalidade e o controle difuso. Embora espécies de um mesmo gênero, são institutos muito diferentes, que exercem funções até certo ponto opostas.
Uma Corte Constitucional situa-se no ápice da hierarquia do Poder. Pode ou não integrar o Poder Judiciário. Não é constituída por juízes de carreira. Sua função é essencialmente política. Embora se fale em “jurisdição constitucional”, suas decisões, de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, têm natureza essencialmente legislativa, dado seu caráter geral e abstrato e sua eficácia erga omnes. A declaração de inconstitucionalidade, em controle constitucionalidade, equivale à revogação da lei.
Os integrantes de uma corte constitucional, tanto por suas origem, quanto pela natureza das funções que exercem, pensam de forma semelhante à das mais altas autoridades da República. Por isso mesmo, tendem mais a reafirmar a autoridade da lei, do que a rejeitá-la.
Os juizes de primeiro grau, pelo contrário, têm concepções semelhantes à de seus concidadãos destituídos de qualquer poder. Por isso, é sobretudo pelas decisões de primeiro grau que se manifesta uma possível rejeição a uma norma emanada dos altos poderes da República, seja lei, decreto do Poder Executivo ou súmula vinculante.
Para conter possível rebeldia dos juízes de primeiro grau contra o Supremo Tribunal Federal, introduziu-se a reclamação (Constituição, art. 103, A, § 3º), medida que pode se tornar inócua, se a rebelião for demasiado ampla e houver desobediência também ao nela decidido.
A rejeição atinge principalmente leis tributárias e penais, em que Estado e súditos se contrapõem. O fenômeno é menos freqüente nas relações entre particulares, pelo maior desinteresse do Estado e porque a lei, ao prejudicar uma parte, favorece a outra.
A inconstitucionalidade nem sempre está na própria lei ( in re ipsa ). Freqüentemente, ela é construída pelos interessados, através da Hermenêutica. A retórica jurídica esconde a verdade subjacente: não queremos essa lei.
Há outras formas de rejeição, não institucionalizadas. E é por isso que há leis existentes apenas no papel. Não são jamais aplicadas e acabam sendo esquecidas.
Como disse Fernando Sabino, as leis são como vacinas: umas pegam e outras não.
2. Jurisdição e políticas públicas
Tendo como ponto de partida o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 45, em 29/04/2004, Rogério Gesta Leal traça os limites do controle jurisdicional de políticas públicas no Brasil. :1
Define política pública como ação estratégica, de instituições ou pessoas de direito público, que visa a atingir fins previamente determinados de natureza pública, ação marcada por alto nível de racionalidade, em termos de organização e de planejamento.
Observa que a Administração, no Brasil, tem gerido os interesses públicos como se sobre eles tivesse domínio excluvo, :com reduzida participação da sociedade civil, mantida em situação de passividade e de relacionamento servil. Na base conceitual desse cenário, encontração a concepção ultrapassada de que a eleição implica delegação incondicionada de poder a agentes públicos, pelo tempo de duração do mandato.
Mas, a :mobilização e a participação políticas que, até o final da década de 1980, :se davam preponderamente a partir do Estado, passou a ocorrer também a partir da Sociedade, de sorte que, agora, a análise de políticas públicas não se referem apenas às geradas nas instituições estatais, mas também às veiculadas através de lobies, de setores mais mobilizados, tanto das elites dominantes, como de grupos populares emergentes, como o MST, ambiemtalistas e consumidores.
As políticas públicas devem,, pois, ser tratadas como questão multidicisplinar, referente à organização, planejamento, execução e valiação de ações voltadas ao atendimento de demandas sociais, sejam realizadas pelo Estado, seja por particulares ou pelo mercado.
O tema das políticas públicas não tem atraído maior reflexão dos juristas brasileiros, não obstante a Carta Política de 1988 explicite, de forma inconfundível, finalidades, objetivos e princípios da República Federativa brasileira, vincultando tanto o Estado como a Sociedade Civil aos seus comandos, fixando o que se pode chamar de um mínimo existencial, desde a perspectiva dos fundamentos da República, a saber, a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana.
Daí decorre a existência de algumas diretrezes, que o Autor chama de “indicadores parametrizantes do mínimo existêncial”, que não podem ser desconsiderados em quaisquer ações – públicas ou privadas – em casos como os de fornecimento de medicamentos e da mantença do fornecimento de água e luz.
Função nuclear de qualquer política pública, no Brasil, é a de servir como esfera de intermediação entre o sistema jurídico constitucional e infraconstitucional e o munda de vida republicano, democrático e social que se pretende instituir no país, donde a existência daquilo que o Autor chama de “políticas públicas constitucionais vinculantes”, que não dependem da vontade ou discricionariedade de quem quer que seja, porque relativas a dignidade humana, ao mínimo existencial dos que dela carecem e a direitos indisponíveis.
Não pode o Judiciário desconsiderar a existência dessas políticas públicas, ainda que com isso se ponham em cheque dogmas como os da idependência dos Poderes e das competências institucionais específicas.
Daí a reflexão do Ministro Celso de Mello, na citada ADPF-45, lembrando que não é da tradição do Estado Moderno e Contemporâneo atribuir-se ao Poder Judiciário a incumbência de formular e implementar políticas públicas, todavia, “tal incumbência, em bora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos esttais competentes, por descumprimerem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a efic´cia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo progrmático”.
Lembrando José Maria Gomez, diz o Autor::
contrariamente ao que defenda a doutrina liberal do Estado de Direito, o jurídico é antes de mais nada político: o direito positivio não é uma dimensão autônoma do político e m fundamento do Estado, mas uma forma constitutiva do mesmo e submetido a suas determinações gerais. Neste particular, o culto da lei e a separação dos Poderes se interpõem como véus ideológicos que dissimulam e invertem a natureza eminentemente política do Direito.
Certamente, o Poder Judiciário não pode fazr a escolha de políticas públicas, mas pode e deve asseguar as já feitas, notadamente s insertas no Texto Político, demarcadoras dos objetivos e finalidades da República Federativa do Brasil.
Nem se pode admitir a desconsideração das políticas constitucionais vinculantes pela simples invocação da “reserva do possível”, porque não se pode outorgar ao próprio agente estatal responsável pela obrigação descumprida a exclusiva e unilateral competência de definir o que é possível ou não em termos de efetivação dos direitos fundamentais, tendo em vista sua indisponibilidade. É preciso que o agente pública faça prova da impossibilidade, de forma fundamentada e ampla, em procedimento próprio, com transparência e contraditória, sob pena de omissão ilícita, sanável pelo Poder Judiciário.
A tese do Autor decorre logicamente da reconhecimento da eficácia direta da Constituição e dos direitos fundamentais. Fundado na Constituição, o Judiciário assume papel político relevante, pelo povo e para o povo. É preciso, porém, um véu ideológico, para ver-se, aí, um governo do povo. Trata-se, antes, do governo de uma aristocracia, a aristocracia do saber e, mais particulamente, do saber jurídico.
3. Sobre a constitucionalização do Direito ordinário
Cezar Saldanha Souza Junior tece severa crítica à corrente que propaga, sem devidas cautelas e necessárias resalvas, a “constitucionalização (direta e imediata) do direito ordinário”, inclusive do direito privado, chegando a denominá-la de totalitarismo jurídico e de colonialismo do direito constitucional sobre os demais ramos do direito.
Aponta como fator constitucional do equívoco, no nível político, de um lado, a fusão dos três níveis de funções (Estado, Governo e Administração), no órgão unipessoal que é o Poder Executivo e, de outro, a fusão, no mesmo órgão (o Poder Judiciário), da jurisdição ordinária e da constitucional (monismo jurisdicional). “Não foi por acaso”, diz, “que o constitucionalismo de valores do segundo pós-guerra trouxe com ele o denominado Tribunal Constitucional como poder autônomo do Estado.
Observa que a evolução político-jurídica do Ocidente chegou ao século XXI reconhecendo três níveis de direito positivo: o do direito constitucional, o intermediário, do direito orinário, público ou privado, e o concreto, realizado, nos fatosda vida pelos administrados e pelos juízes, constituindo estes o chamado direito judiciário.
Da linha evolucionária da história institucional das funções jurídicoas extraem-se dois princípios: o da especialização crescente dos órgãos sociais e políticos, em que avulta a figura do juiz no que pertine à função jurídica, e o da subsidariedade das funções sociais e políticas, a significar que, cada nível funcional realizava subsidiariamente as tarefas de nível superior, enquanto as condições socioculturais não cobravam especialização. Assim, no período primevo, o juiz que judicava cumpria, embrionarimanete, também a tarefa de legislador e era, implicitamente, o controlador dos valores superiores daquele direito rudimentar.
Nos Estados mais evoluídos, esses princípios continuam a valer, mas em prol dos níveis mais concretos do ordenamento, assim que, não é tanto o juiz, enquanto juiz, que existe para servir os legidores: antes, as legislações é que existem para ajudar o juiz a fazer justiça no caso concreto: Não é tanto a legislação que existe para fazer a grandeza ou preservar a eficácia das constituições: antes, as constituições é que foram inventadas para defender, proteger e amparar as boas legislações, aprimorando, corrigindo e suprindo as defeituosas.
Daí decorre que as constituições não devem, nem podem, pretender substituir, jugular ou mesmo abafas as legislações, nem estas a juízes realmente juízes. Práticas e doutrinas com tal pretensão constituem verdadeiras monstruosidades totalitárias, a subverter a dignidade humana (fundamento de todo o Direito) e a distorcer os valores fundamentais do ordenamento jurídico.
Nesse quadro é que deve ser examinada a tormentosa questão dos efeitos fundamentais sobre o direito ordinário em geral e o direito privado em particular. Citando Forsthoff, conclui dizendo que a Constituição não é um supermercado donde se possam satisfazer todos os desejos, nem deve ser transformada em uma massa de argila nas mãos dos ideólogos.
Observo. Parece prevaler, na atualidade, a doutrina da subordinação do juiz primordialmente à Constituição e apenas secundariamente à legislação. Não chega a ser um giro de 180 graus, porque há muito se reconhece o poder de o juiz recusar aplicação a uma lei inconstitucional. Houve, de qualquer modo, uma mudança. Antes, presumia-se a constitucionalidade da lei, exigindo-se evidência de inconstitucionalidade para recusar-lhe aplicação. Parte-se, hoje, da Constituição, ou melhor, do que se pensa que a Constituição diz, para esmagar, como um trator, toda regra que contrarie a ideologica do intérprete da Constituição.
Em sua forma mais extremada, a tese da eficácia direta da Constituição e dos direitos fundamentais sobre o direito privado e sobre o direito processual, nega o princípio da legalidade, como se não fosse, também ele, um princípio constitucional.
Trata-se, essencialmente, de uma questão de medida, porque o próprio Autor não nega, de modo absoluto, a eficácia imediata da Constituição, insurgindo-se, tão só, quanto à propagação dessa doutrina “sem devidas cautelas e necessárias resalvas”.
4. Ação e direitos fundamentais
Para a proteção dos direitos fundamentais, o Estado deve editar normas proibitivas de condutas que os violem (atividade legislativa), assim como tomar providências concretas para que sejam respeitados e recompostos, se violados (atividades administriva e judicial).
A ação é uma dos modos possíveis de efetivação de direitos fundamentais: o de liberdade, mediante habeas corpus, por exemplo: direitos sociais, como no caso das ações propostas contra o Estado e contra o Município, para a obtenção de remédios indispensáveis à saude do autor: direitos de proteção, como no caso dos direitos do consumidor. Pode constituir, também, exercício do direito de participação, como nos casos de ação popular e de ação coletiva proposta por associação em defesa do meio ambiente.
A falta de lei, para a proteção de um direito fundamental, configura lacuna legal, que o juiz pode e deve suprir, no caso concreto, na forma da Lei de Introdução ao Código Civil.2
Diz Marinoni :que a ação “é um direito fundamental não apenas à tutela dos direitos fundamentais, mas sim à proteção de todos os direitos, como o direito de receber quantia em dinheiro devida em razão de um empréstimo ou como o direito de cobrar os aluguéis que não foram pagos pelo locatário”.3 “O direito fundamental de ação obriga o Estado a prestar tutela jurisdicional efetiva a todo e qualquer direito que possa ter sido violado ou ameaçado. Ela não é um direito que exige que o Estado atue para protegê-lo, mas sim um direito que requer que o Estado exerça a função jurisidicional de maneira adequada ou de forma a permitir a proteção efetiva de todos os direitos levados ao seu conhecimento.4
Nessa linha de pensamento, todos os direitos, quando reclamados por via de ação, tornam-se direitos fundamentais, já que a ação é direito à tutela efetiva do direito nela reclamado. Prossegue o Autor:
Na perspectiva da necessidade de técnicas processuais, o direito fundamental de ação pode ser concebido como um direito à fixação das técnicas processuais idôneas à efetiva tutela do direito material. Trata-se de um direito que vincula o legislador, obrigando-o a traçar as técnicas processuais capazes de permitir a proteção das diversas situações conflitivas (p. 207).
Ora, como o direito fundamental de ação incide especialmente sobre a jurisdição, é óbvio que a omissão de lei não justifica a omissão do juiz. Até porque a omissão do legislador, nesse caso, também estaria negando ao juiz o poder necessário para esxercer a sua função. Na verdade, a ausência de técnica processual para a tutela dos direitos constitui, a um só tempo, violação do direito fundamental de ação e obstáculo à atuação da jurisdição. Portanto, para que o cidadão possa efetivamente exercer o direito de ação e para que a jurisdição não se apresente destituída dos meios necesários para atuar, não há como negar ao juiz a possibilidade de suprir a ausência de lei que inviabilidade a efetiva tutela jurisdicional do direito.
O direito fundamental de ação, portanto, incide diretamente sobre o juiz, obrigando-o a suprir a omissão legislativa para poder exercer a sua função de maneira adequada.5
É preciso, porém, negar essa transubstanciação, que acabaria por descaracterizar o próprio conceito de direito fundamental, assim como o acréscimo de poderes judiciais que dessa doutrina resulta. Pode-se admitir que o juiz supra omissão da lei ou mesmo negue eficácia a lei que constitua obstáculo ao exercício de direito fundamental, diretamente decorrente da Constituição. Tratando-se, porém, de direitos meramente legais, valem as restrições legais, porque a lei que os cria pode também restringi-los. Assim, por exemplo, não pode o juiz, a pretexto de tutelar adequadamente direito meramente legal, optar pela execução específica, havendo previsão expressa de conversão em perdas e danos, em caso de inadimplemento.
De outro modo, estaremos construindo um sistema jurídico em que o juiz se superpõe à lei.
5. Soluções práticas e direitos fundamentais
Marinoni aponta como caso de omissão de lei, suprida pela jurisprudência, a admissão de embargos de declaração com efeitos infringentes. Diz:
Embora a supressão de falta de lei possa parecer improvável, a verdade é ela não é incomum, ocorrendo em casos em que a prática não chega sequer a suspeitar. Veja-se, por exemplo, a hipótese dos embargos de declaração com efeitos infringentes. Talvez ninguém imagine que os tribunais, nesse caso, venham suprindo a omissão da legislação processual em nome dos direitos fundamentais de ação e de defesa. Aliás, esse procedimento parece ser quase que inconsciente, pois os tribunais aí não teorizam sobre a ausência de lei e possibilidade de supressão da omissão legal a partir dos direitos fundamentais.6
Posso confirmar a assertiva, porque era juiz de tribunal, quando se introduziu essa jurisprudência. Recordo-me, por exemplo, de havermos admitido embargos de declaração para modificar decisão de não-conhecimento de recurso, por intempestividade, porque no julgamento não nos déramos conta de que havia recaído em feriado local o que nos parecera o último dia do prazo. E, tal como preconizado por :Marinoni, abríamos vista à parte adversa, se nos inclinávamos pela provimento do recurso, com reforma da decisão.
Posso confirmar, também, que a criação dessa jurisprudência não decorreu como dedução dos direitos fundamentais. Tratava-se de problemas práticos que exigiam solução prática.
Ligava-se, sim, a um princípio a audiência da parte adversa, não por exigência constitucional, mas em função da natureza dialética do processo.
Disso tudo, o que se pode concluir é que muitos, senão a maioria dos problemas jurídicos, constituem problemas práticos, que são e devem ser resolvidos pela razão prática, e não por dedução teórica.
A invocação, a posteriori, de princípios constitucionais, geralmente contropostos, e de sua harmonização mediante a aplicação do postulado da proporcionalidade, com ou sem preservação do núcleo essencial do princípio desconsiderado, constitui mera racionalização, processo psicológico pelo qual o sujeito apresenta uma explicação, coerente do ponto de vista lógico, para uma ação ou sentimento cujos verdadeiros motivos não se revelam.
6. Constituição e arbítrio judicial
Numa visão retrospectiva de curto alcance, tem-se feito crítica à subordinação do juiz à lei, criticando-se Chiovenda, que concebia a jurisdição como destinada a atuar a vontade concreta da lei, e, sobretudo Montesquieu, que introduziu o princípio da separação dos poderes, atribuindo ao juiz o papel subordinado de boca da lei (bouche de la loi).
A lei começou a perder o seu prestígio desde quando se passou a admitir o controle judicial de constitucionalidade, no que hoje se chama de controle difuso, atribuindo-se a qualquer juiz o poder de não aplicar norma legal que considerasse contrária à Constituição.
O controle concentrado de constitucionalidade vai em sentido oposto: retira da generalidade dos juizes o poder de confrontar a lei com a Constituição, atribuindo-o a uma corte constitucional, que não é necessariamente um órgão do Poder Judiciário.
Seja como for, a lei, hoje, subordina-se à Constituição. Só implica o dever de obediência, na medida de sua conformidade com a lei fundamental e os valores nela consagrados.
Dessa doutrina, que hoje não é sequer posta em discussão, decorre uma exacerbação dos poderes do juiz e uma correspondente diminuição do âmbito de liberdade dos cidadãos.
É que o cidadão não tem poder. Se deixa de obedecer a uma lei, por julgá-la inconstitucional, pode ser punido pelo juiz que dele discorde. Mas o juiz jamais é punido, ainda que erradamente aplique lei inconstitucional ou deixe de aplicar lei constitucional.
O juiz moderno julga a lei, confrontando-a com a Constituição, não a Constituição como texto passado, mas a Constituição com seu sentido atual, segundo a cabeça do juiz.
O Parlamento perdeu sua supremacia, o que significa, também, a supremacia das normas concretas, individuais, sobre as normas gerais e abstratas. Substituiu-se a subordinação à lei pela subordinação ao juiz.
Diversamente do juiz ultrapassado, que se limitava a declarar a existência ou inexistência de direitos, o juiz moderno (ou pós-moderno, se preferirem), cria e extingue direitos.
Essa é a realidade, gostemos dela ou não.
O estudante do Direito é convidado a gostar dela. Como no passado, é constantemente doutrinado, para afinar seu pensamento com as concepções dominantes.
Para fins dessa doutrinação é que se faz o confronto entre o enaltecido juiz de hoje com o desprezado juiz “bouche de la loi”, deixando-se no olvido as razões que, no passado, levaram à estrita subordinação do juiz à lei.
Para a boa compreensão da matéria é preciso dar-se um passo atrás, e confrontar-se esse juiz, subordinado, com o juiz poderoso, pré-Revolução Francesa.
Ouçamos, por exemplo, a licação de Beccaria (1764) sobre a interpretação das leis:
Resulta ainda, dos princípios estabelecidos precedentemente, que os juizes dos crimes não podem ter o direito de interpretar as leis penais, pela razão mesma de que não são legisladores. Os juizes não receberam as leis como uma tradição doméstica, ou como um testamento dos nossos antepassados, que aos seus descendentes deixaria apenas a missão de obedecer. Recebem-nas da sociedade viva, ou do soberano, que é representante dessa sociedade, como depositário legítimo do resultado atual da vontade de todos.
Não se julgue que a autoridade das leis esteja fundada na obrigação de executar antigas convenções: essas velhas convenções são nulas, pois não puderam ligar vontades que não existiam. Não se pode sem injustiça exigir sua execução: seria reduzir os homens a não passar de um vil rebanho sem vontade e sem direitos. As leis emprestam sua força da necessidade de orientar os interesses particulares para o bem geral e do juramento formal ou tácito que os cidadãos vivos voluntariamente fizeram ao rei.
Qual será, pois o legítimo intérprete das leis? O soberano, isto é, o depositário das vontades atuais de todos: e não o juiz, cujo dever consiste exclusivamente em examinar se tal homem praticou ou não um ato contrário às leis.
O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral: a menor, a ação conforme ou não à lei: a conseqüência, a liberdade ou a pena. Se o juiz for constrangido a fazer um raciocínio a mais, ou se o fizer por conta própria, tudo se torna incerto e obscuro.
Nada mais perigoso do que o axioma comum, de que é preciso consultar o espírito da lei. Adotar tal axioma é romper todos os diques e abandonar as leis à torrente das opiniões. Essa verdade me parece demonstrada, embora pareça um paradoxo aos espíritos vulgares que se impressionam mais fortemente com uma pequena desordem atual do que com conseqüências distantes, mas mil vezes mais funestas, de um só princípio falso estabelecido numa nação.
Todos os nossos conhecimentos, todas as nossas idéias se mantêm. Quanto mais complicadas, tanto maiores são as suas relações e resultados.
Cada homem tem sua maneira própria de ver: e o mesmo homem, em diferentes épocas, vê diversamente os mesmos objetos. O espírito de uma lei seria, pois, o resultado da boa ou má lógica de um juiz, de uma digestão fácil ou penosa, da fraqueza do acusado, da violência das paixões do magistrado, de suas relações com o ofendido, enfim, de todas as pequenas causas que mudam as aparências e desnaturam os objetos no espírito inconstante do homem.
Veríamos, assim, a sorte de um cidadão mudar de face ao passar para outro tribunal, e a vida dos infelizes estaria à mercê de um falso raciocínio, ou do mau humor do juiz. Veríamos o magistrado interpretar apressadamente as leis, segundo as idéias vagas e confusas que se apresentassem ao seu espírito. Veríamos os mesmos delitos punidos diferentemente, em diferentes tempos, pelo mesmo tribunal, porque, em lugar de escutar a voz constante e invariável das leis, ele se entregaria à instabilidade enganosa das interpretações arbitrárias.
Podem essas irregularidades funestas ser postas em paralelo com os inconvenientes momentâneos que às vezes produz a observação literal das leis?
Talvez esses inconvenientes passageiros obriguem o legislador a fazer, no texto equívoco de uma lei, correções necessárias e fáceis. Mas, seguindo a letra da lei, não se terá ao menos que temer esses raciocínios perniciosos, nem essa licença envenenada de tudo explicar de maneira arbitrária e muitas vezes com intenção venal.
Quando as leis forem fixas e literais, quando só confiarem ao magistrado a missão de examinar os atos dos cidadãos, para decidir se tais atos são conformes ou contrários à lei escrita: quando, enfim, a regra do justo e do injusto, que deve dirigir em todos os seus atos o ignorante e o homem instruído, não for um motivo de controvérsia, mas simples questão de fato, então não mais se verão os cidadãos submetidos ao jugo de uma multidão de pequenos tiranos, tanto mais insuportáveis quanto menor é a distância entre o opressor e o oprimido: tanto mais cruéis quanto maior resistência encontram, porque a crueldade dos tiranos é proporcional, não às suas forças, mas aos obstáculos que se lhes opõem: tanto mais funestos quanto ninguém pode livrar-se do seu jugo senão submetendo-se ao despotismo de um só.
Com leis penais executadas à letra, cada cidadão pode calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável: e isso é útil, porque tal conhecimento poderá desviá-lo do crime. Gozará com segurança de sua liberdade e dos seus bens: e isso é justo, porque é esse o fim da reunião dos homens em sociedade. É verdade, também, que os cidadãos adquirirão assim um certo espírito de independência e serão menos escravos dos que ousaram dar o nome sagrado de virtude à covardia, às fraquezas e às complacências cegas: estarão, porém, menos submetidos às leis e à autoridade dos magistrados.
Tais princípios desagradarão sem dúvida aos déspotas subalternos que se arrogaram o direito de esmagar seus inferiores com o peso da tirania que sustentam. Tudo eu poderia recear, se esses pequenos tiranos se lembrassem um dia de ler o meu livro e entendê-lo: mas, os tiranos não lêem.
(Beccaria, Cesare. Dos delitos e das penas, 1764. cap. IV)
É certo que Beccaria se referia ao juiz penal, mas não menos certo é que, se o juiz do cível não está subordinado à lei, tampouco o está o juiz penal, porque a jurisdição é una e una a Constituição.
É certo também que os tempos são outros, mas não menos certo é que a natureza humana permanece a mesma, continuando a ser verdadeira a afirmação de que quem tem poder tende a abusar do poder,
Essa é uma doutrina que hoje soa herética, porque se tem olvidado que, quanto mais alto no nível de abstração de uma norma, maior o grau de liberdade do intérprete.
Vai-se também obscurecendo a idéia de regime democrático, fundado na vontade do povo, expressa por seus representantes eleitos, porque a ela se sobrepõe a vontade de juízes que não passaram, nem passariam, pelo crivo de uma eleição.
7. Motivação e arbítrio
Uma das regras mais importantes da Constituição (que parece vai sendo esquecida) é a de que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II). Note-se: “em virtude de lei” e não “em virtude de decisão judicial”. A norma judicial concreta necessariamente há de se vincular a uma lei, norma geral abstrata. É a velha idéia da subsunção que, por velha (e não por desvaliosa) é já havida por superada, com o que se abrem as portas para o arbítrio judicial, não obstante a fé que se possa ter na exigência, também constitucional, da motivação das decisões.
Afirma-se que a fundamentação permite o controle da atuação do juiz, pelas partes, ou mesmo por qualquer cidadão. :7 Certo, a motivação da sentença exerce relevante papel no controle hierárquico exercido pelos órgãos superiores. Em recurso, a parte pode demonstrar o erro ou mesmo a irracionalidade da decisão inferior. Mas aqui se trata, como já se tornou usual, do JUIZ, ser abstrato como o “homo economicus”, expressão melhor traduzida por “Poder Judiciário”. Evidencia-se, então, que de nada adianta a crítica da parte à decisão judicial que transitou em julgado, que se impõe como ato de poder, independentemente da fundamentação que possa ter. Menos ainda tem eficácia a crítica de “qualquer cidadão”, inclusive a crítica acadêmica. Pode até ocorrer que, a longo prazo, os tribunais se curvem às ponderações contrárias, mas não é isso o que costuma ocorrer. Via de regra, uma reviravolta jurisprudencial ocorre quando os defensores da posição contrária assumem as altas magistraturas, em condições de impor a sua vontade, tratando-se, então, mais uma vez, de subjugação da sociedade, mais do que controle pela sociedade.
Disserta-se a respeito do peso dos argumentos, afirmando-se, por exemplo, que os direitos de liberdade, podem ser afastados, no caso concreto, mediante uma argumentação que demonstre a necessidade de se priorizar outro direito fundamental. :8 Diz-se que “o texto da norma de direito fundamental, da mesma maneira que o texto da lei, faz com que o peso da argumentação recaia sobre aquele que tem interesse em demonstrar um resultado que é a ele contrário”. :9
Mas um argumento não tem peso objetivo. Uma argumentação somente tem maior ou menor peso em sentido subjetivo, na medida de seu poder de nos inclinar para esta ou aquela solução. A fundamentação da sentença pode desvendar, ao próprio juiz, os motivos que o levaram a propender para determinada decisão. Seu valor reside aí, porque submete ao exame da razão eventual intuição sobre os fatos e o direito aplicável.
Voltada para os outros, a argumentação não passa de retórica, que tanto pode revelar quanto ocultar a real motivação. É por isso que uma sentença pode ser suspeita porque extensa sua fundamentação. É que, via de regra, a aplicação da lei não demanda profundas demonstrações. É quando se afasta da lei, quiçá por razões inconfessáveis, que o juiz se estende na argumentação. Quem tem vivência de foro sabe.
Num sistema, como o nosso, fundado no princípio da legalidade, a norma legal aplicável constitui fundamento suficiente. O juiz não precisa justificar a lei. :10 Pelo contrário, é quando se afasta da lei que o juiz precisa caprichar na fundamentação, até mesmo para afastar a suspeita de parcialidade, porque, ao negar aplicação a uma lei, está a dar tratamento diferenciado à relação regulada, prejudicando a parte que a lei favorece.
É certo que, ao aplicar a lei, o juiz adere ao sistema jurídico, mas não é outra coisa o que dele se espera. O juiz não pode ser um câncer, a destruir o próprio sistema de que se alimenta.
O constitucionalismo contemporâneo aumentou enormemente os poderes do juiz, desligando-o das amarras da lei, submetendo-o a princípios que, além de extremamente flexíveis, opõem-se uns aos outros, de sorte que, em última análise, o juiz pode decidir como quer. A exigência de motivação constitui amarra muito frouxa para coibir o arbítrio judicial. À semelhança dos antigos sofistas, o bacharel em direito demonstra qualquer tese, ainda que sem convicção íntima.
8. Criação judicial do Direito
Até pouco tempo, o princípio da legalidade, aplicado ao juiz, significava, em essência, dever de obediência à lei, salvo inconstitucionalidade flagrante. Mantém-se hoje o princípio, mas entendido como de legalidade substancial, no sentido de que a norma legal aplicável deve ser interpretada de conformidade a Constituição, seus princípios explícitos e implícitos e os direitos fundamentais nela consagrados.
Outra mudança importante diz respeito à concepção da jurisdição, não mais como atividade essencialmente declaratória da incidência anterior de uma norma jurídica, mas como atividade de criação do Direito. Em vez de operadores do Direito, temos, agora, construtores do Direito.
A criação judicial do Direito não constitui propriamente novidade. Basta lembrar o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, do já longínquo ano de 1942: “ Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito” (Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942).
Na verdade, sempre houve criação judicial do Direito, porque a lei, concebida como norma geral e abstrata, não pode ser aplicada senão mediante um procedimento de concretização, que implica a criação de uma nova norma, concreta.
Quanto maior o grau de abstração de uma norma, maior o espaço para a criação de normas concretas.
Fique claro que, por lei geral e abstrata, não se pode entender lei aplicável a todos em qualquer circunstância. As leis especiais, que se contrapõem às leis gerais, são também elas normas gerais e abstratas. Tem-se lei em sentido apenas formal, se ela é tão especial que se aplique unicamente a uma pessoa ou a pessoas determinadas, como no caso da que concede pensão especial.
A criação do Direito, ou melhor, a alteração do Direito pode decorrer da edição de novas leis, gerais ou especiais, das decisões judiciais e também de atos contratuais, como os contratos coletivos celebrados entre sindicatos e até mesmo por contratos individuais, que criam normas restritas às partes que os celebram.
Nada disso constitui novidade. Assim, a contraposição entre a atividade judicial declaratória e a atividade de criação do Direito é mais uma questão de ênfase, do que de mudança paradigmática.
Os juízes que exercem a jurisdição integram o Poder Judiciário. Essa expressão “poder”, conduz a uma outra ordem de considerações.
Uma autoridade tem tanto maior poder, quanto maior o âmbito de discricionariedade de que se revestem seus atos.
Sob esse ponto de vista, o juiz do passado, preso ao princípio da legalidade formal, era quase destituído de poder, daí Montesquieu ter afirmado de que sua função política era de certo modo nula.
A doutrina da vinculação do juiz ao princípio da legalidade substancial aumentou expressivamente os poderes do Juiz, porque lhe possibilita a escolha da norma ou princípio aplicável, à luz da Constituição, que raramente tem sentido unívoco.
Substituiu-se, assim, o juiz servo da lei pelo juiz senhor da lei.
Cabe, então, perguntar: o juiz é um prestador de serviço, um servidor do povo, ou senhor do povo, titular de um poder?
Também aqui não cabe uma escolha por uma por outra alternativa. Trata-se, qualquer que seja a escolha, de uma questão de ênfase.
Seja como for, é de se desejar que as autoridades processuais, e aqui incluo os integrantes do Ministério Público, não se distanciem a tal ponto do povo, em direitos e vantagens patrimoniais, que venham a constituir uma “nomenklatura”.
9 - Lei e jurisprudência
O positivismo jurídico, na sua forma extremada, reduzia o Direito à Lei, negando à jurisprudência a natureza de fonte do Direito.
Havia, nessa postura, uma contradição fundamental, porque, ao mesmo passo em que se pretendia tornar “científico” o Direito, à semelhança das ciências naturais, fundadas na observação e na experimentação, negava-se o fato da criação judicial do Direito, que não cessou de ocorrer.
Não era uma ideologia desarrazoada. Imaginava-se que, centrado o Direito na Lei, as decisões judiciais, suposta identidade de circunstâncias, seriam iguais para todos.
Na prática, esse resultado jamais se conseguiu, tendo sido ineficazes os intrumentos introduzidos com vistas à uniformização do Direito, como o antigo recurso de revista e o recurso extraordinário (agora especial) fundado em divergência jurisprudencial. O que resultará das súmulas, especialmente das vinculantes, ainda está por acontecer. É possível que não produzam o efeito desejado, porque cada juiz é um rei.
Já há quem se conforme com a aleatoriedade das decisões judiciais, pretendendo estudar o Direito a partir da idéia de caos.11
Contrapõem-se, aí, duas exigências: uma, a de tratamento igual de situações iguais: outra, a de abertura para novas soluções. Não por outra razão, tem-se atacado as súmulas, com o argumento de que engessariam o Direito.
Uma síntese possível entre essas exigências contrárias pode encontrar-se na jurisprudência entendida como reiteração de decisões no mesmo sentido, e não com o significado que ultimamente vem ganhando corpo, o de “acórdão”.
Um acórdão isolado, de regra, não faz jurisprudência.
A não ser num regime absolutista, em que a palavra do rei é lei, o Direito supõe consenso. Por isso mesmo, nenhum juiz pode ser o “soldado de passo certo”. Se destoa do conjunto, é porque está desafinado.
Daí decorre um paradoxo. Uma jurisprudência inovadora necessariamente supõe uma decisão primeira, “errada” por destoar de todas as demais, e “certa”, por ser a primeira de uma nova orientação.
Como distinguir, então, decisão errada e decisão inovadora?
A resposta não pode ser dada senão a posteriori, conforme venha ou não a originar uma nova orientação.
Um problema, nosso, é o de que mal se pode falar em “jurisprudência”, no Brasil. A reiteração de julgados num mesmo sentido supõe respeito aos precedentes. Mas os próprios tribunais superiores desrespeitam seus precedentes. O cidadão ou o juiz que se curva aos ditames do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça pode ser surpreendido por uma reviravolta jurisprudencial, decorrente, às vezes, da simples substituição de um Ministro por outro. A opinião pessoal prevalece sobre a jurisprudência estabelecida.
Deixando de observar os próprios precedentes, não podem os tribunais superiores esperar que os observem os órgãos inferiores.
Notas de Rodapé
1 LEAL, Rogério Gesta. O controle jurisdicional de políticas públicas no Brasil: possibilidades materiais. In: SARLET, ingo Wolfgang (org. ) Jurisdição e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, :2006. v. I, t. I.
2 Lei de Introdução ao Código Civil, Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942, art. 4º: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
3 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. v. 1, p. 205).
4 Ibidem, p. 205-6.
5 Ibidem, p. 212.
6 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 343-7.
7 “A legitimidade da decisão jurisdicional depende não apenas de estar o juiz convencido, mas também de o juiz justificar a racionalidade da sua decisão com base no caso concreto, nas provas produzidas e na convicção que formou sobre as situações de fato e de direito. Ou seja, não basta o juiz estar convencido – deve ele demonstrar as razões de seu convencimento. Isso permite o controle da atividade do juiz pelas partes ou por qualquer cidadão, já que a sentença deve ser o resultado de um raciocínio lógico capaz de ser demonstrado mediante a relação entre o relatório, a fundamentação e a parte dispositiva” (MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 104).
8 “Lembre-se que Alexy atribui aos direitos de liberdade uma espécie de prioridade – chamadaprima facie – sobre os demais direitos fundamentais, :mas essa prioridade pode ser superadadiante das circunstâncias do caso concreto e desde que acompanhada de uma carga de argumentação capaz de demonstrar a necessidade de proteção do direito fundamental que, em abstrato, ao é detentor de prioridade” (Id. ibidem, p. 98).
09 “O texto da norma de direito fundamental, da mesma maneira que o texto da lei, faz com que o peso da argumentação recaia sobre aquele que tem interesse em demonstrar um resultado que é a ele contrário. Nesse sentido, é possível dizer que o texto da norma possui, por assim dizer geneticamente, o peso da argumentação do seu lado” (Id. Ibidem, pp. 127).
10 “Ainda quando existe uma norma jurídica precisa para justificar a decisão que se deve adotar, ela não pode incorporar-se, como tal, ao raciocínio justificatório com independência de juízos valorativos. Isto é assim, esclarece Santiago Nino, porque é essencial ao caráter normativo de uma norma jurídica, ou à sua distintividade como norma jurídica, a existência de certas características que marcam a sua formulação, e que inevitavelmente se perdem quando se trata de um raciocínio justificatório que conduz a uma decisão. Dentro de um raciocínio justificatório, uma conclusão só pode derivar de uma premissa normativa, exatamente por ser notrmativa, também precisa estar normativamente fundada. Logo, nesse tipo de justificação, é preciso fundar a validade da premissa, e como uma norma não pode ser validade por uma fato, seja ele um fato hipotético produtor de normas (norma fundamental de Kelsen) ou um fato social (regra de reconhecimento de Hart), é necessário fundar as premissas da solução normativa na moral. Por isso, conclui Santiago Nino, :quando os juízes apóiam suas decisões em normas jurídicas, fazem-no através de juízos de “adesão normativa”, que consistem em juízos valorativos que se inferem de princípios morais que prescrevem obedecer a ordem jurídica e de proposições descritivas dessa ordem jurídica” (Id. Ibid. p. 123).
11 Por exemplo, Ricardo Aronne, Direito... e Teoria do Caos.
TESHEINER, José Maria Rosa Tesheiner. Processo e Constituição – Algumas reflexões. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 8, nº 807, 29 de Julho de 2008. Disponível em: https://www.paginasdedireito.com.br/artigos/todos-os-artigos/processo-e-constituicao-algumas-reflexoes.html