O Código Civil e a Alienação Fiduciária de Veículos
Arruda Alvim - Advogado em São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro e Professor dos Mestrados da PUCSP e da FADISP
O Código Civil vigente disciplinou a alienação fiduciária em garantia, em relação a veículos, de forma algo diferente daquela que precedentemente estava regulada. A atual disciplina é mais específica, ao passo que a anterior era mais genérica, e, dentro desta, estavam os veículos compreendidos, ainda que a esses houvesse menção específica no § 10, do art. 66.
A alienação fiduciária investe o credor da qualidade de proprietário da coisa, proporcionando ao devedor a utilização do veículo, enquanto paga o que deve àquele. Trata-se de uma garantia sobre coisa própria, porque o credor se torna proprietário, com a finalidade exclusiva de obter uma garantia real mobiliária para o pagamento do que lhe é devido. A garantia, no caso, demanda ser objeto de publicidade, o que ocorre com as garantias reais, exatamente para terem validade e produzirem efeitos em relação a terceiros.
No decreto-lei 911, do ano de 1969, havia dois dispositivos que hão de ser considerados. O primeiro deles é o § 1º, do art. 66 (o decreto-lei 911 deu nova redação ao disposto no art. 66, da Lei 4.728, de 14 de julho de 1965) e dispunha: “Art. 66. ………§ 1º A alienação fiduciária somente se prova por escrito e seu instrumento, público ou particular, qualquer que seja o seu valor, será obrigatoriamente arquivado, por cópia ou microfilme, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do credor, sob pena de não valer contra terceiros, e conterá, além de outros dados, os seguintes: ……… Era esta publicidade, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio credor, que, a partir do arquivamento ou do registro atribuia o direito real a esse credor ou proprietário. Dispunha o § 10, desse art. 66 ----- paralelamente ---- do mesmo decreto-lei 911, o seguinte: “ 10. A alienação fiduciária em garantia do veículo automotor, deverá, para fins probatóros, constar do certificado de Registro, a que se refere o artigo 52 do Código Nacional de Trânsito.' Esse art. 52 do Código Nacional de Trânsito dispõe: 'Art. 52. Nenhum veículo automotor poderá circular nas vias terrestres do País, sem o respectivo Certificado de Registro, expedido de acordo com este Código e seu Regulamento'. Deve-se observar que esse art. 66, da Lei 4.728/65 e o seu 66-A, foram revogados pelo art. 67 da Lei nº 10.931/04 e substituídos pelo art. 66-B, nos termos do disposto no art. 55 da Lei nº 10.931. Antes disso o art. 22 da Medida Provisória nº 2.160-25, de 23 de agosto de 2001 (dispôs sobre a Cédula de Crédito Bancário e acresce dispositivo à Lei no 4.728, de 14 de julho de 1965, para instituir a alienação fiduciária em garantia de coisa fungível ou de direito), e que foi mantida em vigor pela Emenda Constitucional nº 32, havia acrescido à lei o seu o art. 66-A (art. 22, dessa MP 2.160-25). Esta sucessão de normas não altera a substância da exposição.
A publicidade de uma situação jurídica de ônus ou direito real, que se constitui, justamente pela própria publicidade, que é criadora ou constitutiva dessa situação, deve ser apta para proporcionar condições práticas e funcionais de ser conhecida de todos, ou seja, dos terceiros, que potencialmente podem negociar um veículo onerado pela alienação fiduciária em garantia.
O entendimento que sempre prevaleceu foi o de que o § 1º, desse art. 66 é que criava a garantia real, ao passo que, o § 10, do mesmo art. 66, destinava-se, apenas, a fins probatórios.
Se esse era o entendimento a respeito, veio ele se alterando, e a interpretação que veio culminar na inteligência desses textos foi a de que necessária se fazia uma publicidade que objetiva e eficientemente pudesse realmente ensejar conhecimento da situação do ônus existente sobre o veículo.
O Superior Tribunal de Justiça, que é o Tribunal ao qual cabe, em última instância, dar a palavra final a respeito do entendimento das leis federais, construiu pretorianamente um entendimento que, em termos práticos, acabou por atribuir ao § 10, do art. 66, do decreto-lei 911/69, essa função de publicidade.
Das inúmeras manifestações do Superior Tribunal de Justiça é claramente evidenciável que essa construção objetivou atender, precisamente, às próprias finalidades da função da publicidade.
Se o registro do instrumento da alienação fiduciária em garantia em relação a veículos, no domicílio do credor era de difícil percepção por terceiros, tendo em vista a velocidade dos negócios e a ausência de facilidade na obtenção desse dado, acabou pela jurisprudência construindo o entendimento de que se fala a seguir.
Um dos pronunciamentos marcantes, nessa linha construtiva do STJ ---- na esteira do mesmo entendimento de outros Tribunais e com repercussão dentro do STJ ----, foi o do Min. Athos Carneiro. Este asseverou, contribuindo para essa construção que:
“……doutrina e jurisprudência repetem que nem o registro no Cartório de Títulos e Documentos, nem o registro no Departamento de Trânsito fazem o papel da transcrição imobiliária, pois não integram a aquisição da propriedade móvel ou automóvel como elemento essencial (art. 620 do CC [refere-se ao Código Civil de 1916: corresponde-se o art. 1.267, caput, do atual Código Civil]). Aqueles registros de alienação fiduciária de coisa móvel ou automóveis não são constitutivos do direito real, bastando a tradição com o ânimo de transferir a propriedade”.
Mais adiante, disse nessa mesma decisão proferida no Superior Tribunal de Justiça:
“……a publicidade que o Registro de Títulos e Documentos proporciona não supera os limites da ficção, pela quase impossibilidade total que terceiros têm na consulta a esses registros, para verificar a situação do bem. Outrossim, existindo a previsão de registro perante a autoridade de trânsito, a fim de constar de próprio Certificado de Registro, também conhecido como Certificado de Propriedade, a alienação fiduciária, é manifesto que é dispensável [a inscrição no Cartório de Títulos e Documentos], e aceitar a prevalência de quase a hipotética publicidade advinda do registro de títulos e documentos, é inverter a ordem lógica do tema, fazendo que o registro de veículos da repartição de trânsito, local próprio para consignar-se os dados sobre os veículos automotores, inclusive alienação fiduciária, fique em segundo plano, quando é precisamente de sua conduta que qualquer pessoa, e facilmente, pode assenhorear-se de tais dados (...) Aliás é importante ressaltar que o registro nas repartições de trânsito tem muito mais condições de constituir um cadastramento, do que o registro no Cartório de Títulos e Documentos considerada a estruturação daquele, que pretende formar um Registro Nacional de Veículos (arts. 52 a 56 do CNT)' (voto proferido no julgamento do Recurso Especial. nº 1.774-0/SP, rel. Min. Athos Gusmão Carneiro, 4ª Turma, v.u., j.10.04.90, Revista do Superior Tribunal de Justiça, vol. 61/pp. 145-152 – trecho destacado por nós).
Esse entendimento veio a ser cristalizado na súmula 92 do STJ:
“Súmula: 92 A terceiro de boa-fé não é oponível a alienação fiduciária não anotada no certificado de registro do veiculo automotor”.
O Código Civil vigente ---- ainda que houvesse algum exagero na argumentação de alguns dos entendimentos do STJ, justamente com vistas a superar o entendimento precedente, ou, o de estabelecer que era imprescindível que constasse do registro do veículo a alienação fiduciária, o que tinha de ser feito pelo Departamento de Trânsito ---- veio a dispor clara e coincidentemente, no seu art. 1.361, segunda parte, com o entendimento que veio paralelamente sendo construído pelo Superior Tribunal de Justiça, antes da vigência do Código Civil atual. Dispõe esse art. 1.361, no seu parágrafo primeiro:
“Art. 1.361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor.
§ 1o Constitui-se a propriedade fiduciária com o registro do contrato, celebrado por instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de registro”.
Para outras hipóteses, que não a de alienação fiduciária sobre veículos, ficou mantido o sistema precedente: em relação a veículos, a garantia real da alienação fiduciária resulta constituída pelo registro junto à repartição competente, ao que deve seguir-se a anotação no certificado do registro.
Com isto ajustou-se nitidamente o sistema legal ao mundo dos negócios, porquanto, dessa forma, a publicidade ---- agora inequivocamente decorrente da lei atribuindo-a ao Departamento de Trânsito ---- coincide com as necessidades desse universo dos negócios, resultando disso o benefício da segurança jurídica para quem negocia veículos, o que ajuda e incentiva a sua comercialização.
ALVIM, Arruda Alvim. O Código Civil e a Alienação Fiduciária de Veículos. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 8, nº 708, 25 de Janeiro de 2008. Disponível em: https://www.paginasdedireito.com.br/artigos/todos-os-artigos/o-codigo-civil-e-a-alienacao-fiduciaria-de-veiculos.html


