Comentários aos arts. 777 a 782 do CPC - Da Extinção das Obrigações do insolvente
Art. 777. A prescrição das obrigações, interrompida com a instauração do concurso universal de credores, recomeça a correr no dia em que passar em julgado a sentença que encerrar o processo de insolvência.
Introdução
Como visto no comentário anterior, a satisfação da obrigação, no período em que vigia o antigo direito romano, a execução se processava por meio da Iegis actio per manus injectionem, ou seja, com a responsabilidade pessoal do devedor (morte ou escravidão). Mais tarde, abolida pela Lex Poetelia, fortalecendo a figura do juiz que poderia imitir o credor na posse do patrimônio do devedor, por meio da missio in bona rei servendae causa. E, por último, viu-se a bonorum cessio, a qual impunha ao devedor romano o abandono de seu patrimônio em favor do credor, no limite da dívida. Esta bonorum cessio1 tinha por fim evitar a execução pessoal sobre o devedor e a imposição de infâmia, além de assegurar uma reserva de bens, adquiridos posteriormente ao abandono, do que fosse necessário para viver.
A responsabilidade do devedor com a própria vida foi banida dos ordenamentos jurídicos ainda ao tempo do direito romano. A partir de então, as obrigações convergiram para a satisfação do débito por meio do patrimônio do devedor. Porém, no direito medieval, após a invasão bárbara na Europa, ocorrida no século V, a doutrina germânica tornou a impor ao devedor à responsabilidade patrimonial e pessoal (escravidão), se insolvente.
No século XI, teve início uma grande atividade científica processual, impulsionada pela escola de Bolognha, culminou com a formação do direito comum europeu que perdurou até meados do século XVI, ultimada com o fim das invasões bárbaras. Nessa época, a doutrina européia abolira a escravidão do devedor por dívida, mantendo normas relativas à prisão do insolvente, como medida coercitiva ao adimplemento, conforme se depreende do direito peninsular ibérico (Furero Real de Afonso IX), assinalado por Alfredo Buzaid2.
No Brasil, mesmo após a sua independência política, permaneceram em vigor as Ordenações Filipinas, datadas de 1.603, além da Lei Portuguesa nº 1.774, a qual, no seu § 19, ainda prescrevia a prisão civil por dívidas, porém, tão-somente, para os devedores de má-fé3. Essa legislação, entretanto, foi alterada diversas vezes, em especial, pelas seguintes normas, a saber: (a) Regulamento nº 737 de 1.890: (b) Decreto nº 917 de 1.890: e, (c) Lei nº 859 de 1.902.
Na atualidade, em face da evolução histórica da ordem processual relativa ao devedor insolvente, a responsabilidade do devedor alcança repercussão somente na sua esfera patrimonial4, excetuado pelas duas únicas hipóteses de prisão civil5. Afora isso, o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens6, presentes e futuro, salvo as restrições estabelecidas em lei7, ex vi do bem de família8.
Extinção da obrigação
A obrigação, segundo Robert Joseph Pothier, é o consentimento de duas ou mais pessoas para formar entre si algum compromisso, ou para resolver um existente, ou para modificá-lo. A espécie de convenção que tenha por objeto formar algum compromisso chama-se contrato9. Adiante, segue a lição do mestre das obrigações, no sentido de que somente as promessas que fizemos com a intenção de cumprir, e de conceder a quem as fazemos o direito de exigir seu cumprimento, dão matéria para um contrato ou uma convenção.
Enquanto a exigência do cumprimento, por conseguinte, é a morte natural da obrigação. De modo que o devedor fica liberado da sua promessa que fez com a intenção de cumprir, ao cabo de sua implementação. Porém, necessário dizer que o pagamento nem sempre é feito em moeda de contado. Pagar, para a ciência jurídica, é executar a obrigação pactuada, conforme preceitua a extinção das obrigações no direito civil (CC, arts. 304 usque 388).
Pode-se afirmar, contudo, que o pagamento consiste no ato jurídico formal, praticado pelo devedor, correspondente ao exato termo da promessa assumida em face do credor, ao tempo, modo e lugar convencionado.
Como visto linhas acima, o cumprimento da obrigação é a sua conseqüência natural, por causa do exaurimento da promessa que se pretendia cumprir. De tal modo que, apenas excepcionalmente, a obrigação se extinguiria pela falta de exigência do seu cumprimento, dentro de determinado transcurso temporal, isto é, antes do encobrimento da pretensão. Por isso que os prazos prescricionais, para Pontes de Miranda10, servem à paz social e à segurança jurídica. Não destroem o direito, que é: não cancelam, não pagam as pretensões: apenas, encobrindo a eficácia da pretensão, atendem a conveniência de que não perdure por demasiado tempo a exigibilidade ou a acionalidade.
E a extinção da obrigação faz-se presente, com mais razão ainda, no processo de insolvência civil, em face da natureza da lide, que impõe a liberação incondicionada do devedor executado, posto que desnecessária a satisfação integral dos créditos, após a declaração da extinção dessa obrigação (CPC, art. 782).
Nesse sentido, lição de Humberto Theodoro Júnior11, ao inferir com propriedade que não há, nem pode haver, proteção ad aeternum da execução concursal, que nunca pode ser conduzida pelas partes e pelo juiz além das conveniências e das razões pelas quais ela se iniciou, e que são a liquidação total do patrimônio do devedor para o rateio entre os credores e a extinção das obrigações do insolvente ao fim de um prazo fatal, com ou sem satisfação inteira dos credores.
Portanto, para pôr fim ao concurso de credores, necessário que o provimento jurisdicional afaste do devedor os efeitos da declaração de insolvência. Por isso que o legislador impõe o marco inicial para a contagem do prazo preclusivo (CPC, art. 778), com vista à extinção das obrigações do devedor, ainda que não solvidas.
Da prescrição interrompida
A prescrição referida no artigo em comento não guarda relação com a extinção das obrigações do devedor executado, mas, tão-somente, com o reinício do prazo prescricional, interrompido com a instauração da ação coletiva de credores (CC, art. 202, IV12). Prescrição essa que somente será oponível em face dos créditos remanescentes e ainda exigíveis no implemento dos 5 anos13.
Nesse sentido, merece transcrita a lição de Pontes de Miranda, verbis:
“O art. 778 nada tem com os prazos de prescrição (podem ser muitos e diferentes, conforme a pretensão em ação nascida do crédito). Direito não prescreve. O art. 777 falou de prescrição, mas tal regra jurídica nada tem com a do art. 778. É erro grave a confusão que estão fazendo comentadores do Código de 1973 entre o art. 777, que de modo nenhum se refere o prazo de cinco anos e apenas regula o recomeço devido à interrupção do prazo principal...”
Por se tratar de prazo interrompido, a sua contagem se fará por inteiro, sendo o marco inicial para sua fluência o dia em que passar em julgado a sentença que encerrar o processo de insolvência. E, por se trata de sentença declaratória para determinar o encerramento do processo de insolvência, há de ser observado o duplo grau de jurisdição, de modo que somente após transito em julgado é que se retomaria o curso das prescrições interrompidas14.
Art. 778. Consideram-se extintas todas as obrigações do devedor, decorrido o prazo de 5 (cinco) anos, contados da data do encerramento do processo de insolvência.
O prazo de cinco anos, referido neste artigo, é preclusivo, em face da extinção do próprio direito (obrigações e ações). De modo que expirado o prazo de cinco anos, sem qualquer modificação no plano material, serão declaradas extintas as obrigações do devedor executado, mesmo que não solvidas.
Não se esqueça, que tratar da prescrição ou da preclusão em meio ao direito processual constitui impropriedade legislativa, aliás, foi evidenciada por Pontes de Miranda15 ao afirmar que as regras jurídicas dos arts. 777 e 778 são de direito material: portanto, heterotópicas. Pôr-se no Capítulo VIII o art. 777 foi erro de técnica legislativa, fulmina.
De outro lado, a extinção das obrigações do devedor insolvente somente ocorrerá quando não houver mais a possibilidade de ser exigida a pretensão ou a ação relativo ao crédito concorrente, se antes, contudo, não estiver solucionado o compromisso pactuado espontaneamente ou por meio da execução forçada.
No entanto, somente após o transcurso do prazo de cinco anos, contados a partir do trânsito em julgado da sentença que declarar o encerramento do processo concursal, é que o devedor alcançará a finalidade do provimento judicial, para o efeito de extinguir a relação processual e exaurir os efeitos vexatórios da declaração de insolvência.
Art. 779. É lícito ao devedor requerer ao juízo da insolvência a extinção das obrigações: o juiz mandará publicar edital, com o prazo de 30 (trinta) dias, no órgão oficial e em outro jornal de grande circulação.
O fim da situação de insolvência aproveita exclusivamente ao devedor executado que, para livrar-se do processo concursal, tem a faculdade de requerer ao juiz da causa a extinção de suas obrigações. A petição que pedir a declaração da extinção das obrigações do devedor deverá obedecer à regra do art. 282 do Código de Processo Civil, cujo valor da causa equivalerá aos créditos extinguíveis16.
A publicação do pedido de insolvência, intentado pelo devedor executado, em jornal de grande circulação, serve, não raras vezes, para atender a publicidade do ato processual. Isso porque se mostra necessário para que os credores possam exercer o direito de impugnações opondo-se ao pedido de extinção conforme a previsão do art. 780, em atenção à garantia constitucional do contraditório e da defesa ampla. De conformidade com o princípio do due process of law, formulado originalmente na Magna Charta, outorgada pelo rei João da Inglaterra, no ano de 1.215. Expresso, também, na 14ª Emenda à Constituição Norte-Americana e adotada pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988, no artigo 5º, inciso LIV.
Art. 780. No prazo estabelecido no artigo antecedente, qualquer credor poderá opor-se ao pedido, alegando que:
I - não transcorreram 5 (cinco) anos da data do encerramento da insolvência:
II - o devedor adquiriu bem, sujeitos à arrecadação (art. 776).
A norma contida neste artigo consiste na conseqüência natural da publicação do edital, conforme comentado linhas acima. Isso porque qualquer credor, desde que admitido no quadro geral dos credores (CPC, art. 769), poderá obstar a declaração da extinção das obrigações do devedor executado por meio da oposição, em homenagem ao contraditório.
De ressalvar o posicionamento acertado de Araken de Assis17, no sentido de que se vincula tal oposição através de contestação, sendo admitidas, naturalmente, exceções de suspeição, impedimento e incompetência. Entretanto, mesmo se tratando de contestação, a matéria de defesa é estreita às duas hipóteses dos dois incisos do texto em exame18.
A primeira alegação de defesa – de que não transcorreram 5 (cinco) anos da data do encerramento da insolvência – consiste no própria falta do transcurso do qüinqüênio legal que, obviamente, não acarreta a extinção da obrigação. De reiterar, ainda, que o prazo de cinco anos começa a fluir a partir do trânsito em julgado da sentença que declarar o encerramento do processo de insolvência (CPC, art. 778).
A segunda alegação de defesa – o devedor adquiriu bens, sujeitos à arrecadação (art. 776) – impende repetir que, enquanto não for declarada a extinção das obrigações do devedor insolvente, seja por meio do pagamento ou da prescrição (art. 777), os bens adquiridos pelo devedor serão expropriados e alienados em leilão ou praça, a fim de satisfazer o saldo existente (CPC, art. 776). Ademais, como adverte Pontes de Miranda19, é preciso que continue insolvente o devedor, pois, se o devedor adquiriu bens sujeitos à arrecadação, insolvente deixou de ser, mesmo que os bens apenas permitam o exercício da nova ação executiva concursal (arts. 775 e 776). E, ocorrida nova ação executiva concursal, não há como extinguir as obrigações do devedor executado, conforme se depreende da leitura do art. 778, antes comentado.
Art. 781. Ouvido o devedor no prazo de 10 (dez) dias, o juiz proferirá sentença, havendo provas a produzir, o juiz designará audiência de instrução e julgamento.
A resposta do devedor emerge da garantia constitucional que assegurada aos litigantes e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com os meios de recursos a ela inerentes, consagrada no art. 5º, inc. LV, da Constituição da República Federativa do Brasil.
Importa assinalar, como fez Celso Neves20, no que se refere a ausência de necessidade de aprazar audiência para verificar o transcurso do prazo de cinco anos da data do encerramento da insolvência, quando alegado por qualquer credor, nos termos do art. 780, I.
Diferentemente do que ocorre quando o credor alegar que o devedor adquiriu bem sujeito a arrematação (CPC, art. 780, II). Nesse caso, a audiência se faz necessária, a fim de afastar qualquer dúvida sobre o caso concreto. Ademais, por ser de difícil comprovação a ocorrência da aquisição de bens pelo devedor executado, necessário que o juiz autorize a produção dessa prova, pois, não raras vezes, ocorre mediante fraude.
Entretanto, se a alegação estiver revestida de prova capaz de provocar um juízo de procedência, ou se o devedor executado concordar com a alegação do credor, poderá haver julgamento antecipado da lide, nos termos do art. 330, I, sem a realização de audiência.
A toda evidência, outrossim, que a sentença que julgar a extinção das obrigações estará sujeita ao duplo grau de jurisdição.
Art. 782. A sentença, que declarar extintas as obrigações, será publicada por edital, ficando o devedor habilitado a praticar todos os atos da vida civil
A sentença declaratória que enseja a extinção das obrigações do devedor executado é preponderantemente desconstitutiva e produz efeitos ex nunc21, reabilitando-o a praticar todos os atos da vida civil, é aquela passada em julgado, observado, se existente saldo impago, o transcurso do prazo preclusivo do art. 778.
A publicação da sentença por meio de edital faz-se necessário pelo mesmo motivo que a lei impôs a convocação dos credores por meio editalício para a instauração do concurso de credores (CPC, art. 761, II). Decorrência lógica da publicação do edital é o início do prazo de 15 (quinze) dias para os credores apelarem, como bem assinalou Araken de Assis22.
A partir de então, transcorrido o prazo de quinze dias sem apelação, estará o devedor, não mais insolvente, plenamente reabilitado a praticar todos os atos da vida civil.
1 Alfredo Buzaid in “Do Concurso de Credores no Processo de Execução”, Saraiva, pág.75.
2 Alfredo Buzaid in “Do Concurso de Credores no Processo de Execução”, Saraiva, pág. 107.
3 Alfredo de Araújo Lopes da Costa in “Direito Processual Civil Brasileiro”, Forense, pág. 334.
4 CPC, art. 748. Dá-se a insolvência toda vez que as dívidas excederem à importância dos bens do devedor.
5 CF, art. 5º, LXVII. Não haverá prisão por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depósito infiel.
Alimentos: CPC, art. 733, § 2º.- STJ Súmula nº 309 - :27/04/2005 - DJ 04.05.2005 - Alterada - 22/03/2006 - DJ 19.04.2006 - O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo.
Depósito: CPC, art. 902, § 1ª.
6 CPC, art. 591.
7 CPC, art. 649 e CC, art.955.
8 CC, art. 1.711. Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial.'
CC, art. 1.712. O bem de família consistirá em prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família.'
9 Robert Joseph Pothier in “Tratados das Obrigações”, Servanda, pág. 31.
10 Pontes de Miranda in “Tratados de Direito Privado”, Borsoi, pág. 101.
11 Humberto Theodoro Júnior in “A Insolvência Civil”, Forense, pág. 399.
12 Código Civil, art. 202, IV. A prescrição interrompe-se: pela apresentação do título de crédito em juízo de inventário ou em concurso de credores.
13 Araken de Assim in Manual do Processo de Execução, Revista dos Tribunais, 2º edição, pág. 870.
14 Celso de Neves in “Comentários ao Código de Processo Civil”, Forense, pág. 362.
15 Pontes de Miranda in “Código de Processo Civil”, Forense, pág. 511.
16 Araken de Assim in Manual do Processo de Execução, Revista dos Tribunais, 2º edição, pág. 872
17 Araken de Assim in Manual do Processo de Execução, Revista dos Tribunais, 2º edição, pág. 872.
18 Celso Neves in “Comentários ao Código de Processo Civil”, Forense, pág. 363.
19 Pontes de Miranda in “Comentários ao Código de Processo Civil”, Forense, pág. 516.
20 Celso Neves in “Comentários ao Código de Processo Civil”, Forense, pág. 364.
21 Araken de Assis in “Manual do Processo de Execução”, Revista dos Tribunais, pág. 873
22 Araken de Assis in “Manual do Processo de Execução”, Revista dos Tribunais, pág. 873.
GOMES, Carlos de Souza Gomes. Comentários aos arts. 777 a 782 do CPC - Da Extinção das Obrigações do insolvente. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 7, nº 678, 24 de Novembro de 2007. Disponível em: https://www.paginasdedireito.com.br/artigos/todos-os-artigos/comentarios-aos-arts-777-a-782-do-cpc-da-extincao-das-obrigacoes-do-insolvente.html

